Category: Fragments


  • Rosa XL

    Rosa XL

    A porta continuava aberta. Tinha daquelas fitinhas para não deixar entrar as moscas, como se usam nos talhos para impedir uma invasão de lacraus alados com força romana. Sentava-se ali naquele murinho, ensonado por outra noite mal dormida. As asperezas de Aurélio eram assim vividas como se fosse um passarito colocado à beira do ninho…

  • Rosa XXXIX

    Roberto servia numa florista em Odivelas. Os clientes que por ali passavam chamavam-lhe bicha em surdina. Tinha tremores à noite quando pensava no sofrimento atroz que isso lhe causava. Arrebitava às orelhas sempre à cata do menor comentário. Zurziam as velhas por entre os ramos, as crisálidas e os crisântemos, prontas para lhe ferroar com…

  • Rosa XXXVIII

    Carlos, o Mago fazia truques para encolher os inimigos. Dizia que eles tinham lombrigas e outras asperezas pelo corpo para lhes entortar os destinos e condená-los à dor perpétua de com ele se terem metido. Vergastava-os com pozinhos de azevinho e mel, arregimentava hordas de anjos imaginários para avançar contra esses carrancudos garotos que o…

  • Rosa XXXVII

    Maria era dona de uma joalharia em São Domingos de Rana. Tinha o estranho hábito de colecionar missangas esverdeadas para dar aos filhos nos pequenos-almoços antes de saírem de casa. Ria-se das desventuras dos famosos. Sabia-se que era uma das mais queridas donas da casa da região, preparando bolos confecionados com leite coalhado e outras…

  • Rosa XXXVI

    Laurentino tinha um espelho fiel onde guardava relâmpagos que lhe caíam ao colo. Soçobrava nos intervalos da escola, quando o chamavam ao pátio. Recusava-se a ir. Tinha o peito cravado por balas de borracha colecionadas em pequenos tragos de leite, sobre o qual dormitava noite adentro, afoito como um silente dançarino de salão. Lia salmos…

  • Rosa XXXV

    Rosa XXXV

    Ergo uma espada acetinada, exausta de sangue quente. Brando-a incandescente como uma ave de rapina a quem se rasga o coração por ordens de justeza bruta e feral. Entreolho as sombras com a lassidão gélida de um falcão, herdeiro de uma guilhotina férrea e trespassante. Ergo-a como antigo troféu de guerra, exortando aos ladrões do…

  • Rosa XXXIV

    Margarida colecionava bisnagas de vários formatos e qualidades. A maioria vinha de França. O pai comprava-lhas todos os sábados de manhã, quando ia à praça municipal buscar peixe. Trazia-as no porta-moedas castanho, com espaço para as notas, os documentos de identificação e essas bisnagas com que ela pintava cartolinas nos intervalos da escola. Assobiavam-lhe para…

  • Rosa XXXIII

    Gustavo escondia-se por entre as estantes. Gostava de rabiscar pequenos desenhos de animais alados, deixando-os espalhados pela alcatifa lá de casa. Gatinhava por aqueles espaços como um pequeno bandido que foge à própria quadrilha. Adorava deixar-se tombar nas partes mais fofas do chão acastanhado, à espera que o viessem buscar para o adormecerem na sua…

  • Rosa XXXII

    Tudo o que jaz na minha cabeça é como um prato surdo que não chega a lugar algum. Receio pela minha própria condição de humano ao resgatar-me deste som distante por onde tu corres em pegadas soltas de cuspe. Leio-me a mim mesmo com olhos de águia morta que se solta nessa correnteza, nas cúspides…

  • Rosa XXXI

    Rosa XXXI

    É nos golpes de faquir que revelo a identidade secreta da ave que me persegue. De bico verde, asas em flor desabrida que se erguem ao sol de novembro, pneuma esvaído em névoa roxa sem emanação própria. Roldana no ventre borbulhante que guia os destinos das almas como um poeta cego nas mãos, vidente em…