As sinfonias violeta de Gusmão Peres compunham-se com traves-mestras, encimadas por dezenas de orquestrações bélicas que encaixavam belas nos baques e zurzidos do chão de flanela onde ensaiava. Tinha por hábito transportar consigo pequenos livrinhos com ensinamentos proféticos, onde cabiam centenas de dizeres, dichotes e aforismas vários dos maiores pensadores contemporâneos. Pasmava-se com as obras de Degas. O seu quotidiano era composto por uma selecta presença nas mais renomadas festas da cidade. Antes de sair de casa, depositava no alguidar os suspensórios, aparava o bigode, desprendia o postigo e saía para o ar quente de verão, alagado num bálsamo dourado. Ria-se das comezainas que encontrava, do cheiro a pimenta que lhe irradiava as narinas, daquele abrasador sentimento estival que quilhava pulmões à força bruta de um ronco leonino. Por vezes, o intenso ardor cobria-lhe os olhos de lágrimas e auxiliava-se de um lencinho branco para enxugá-las com reverência. Tinha um amor estranho pela cidade, pelas quinquilharias velhas que encontrava nas descidas, nas ladeiras enamoriscadas com aquele povo solto e bravio, com as lavadeiras que erguiam os braços com a força de um mar bruto sem tempo para brisas. A austeridade de uma gente que sofria em segredo, que deitava as mãos ao próprio pescoço se pudesse entregar-se ao desvario da existência. Mas que preferia, afinal, arregaçar as mangas e atirar-se afoita aos lençóis, às cestas de fruta, às asperezas daquelas manhãs e tardes onde o mundo impedia que o chão transpirasse uma só vez.