Rosa XXIII

Rosa XXIII

A fé, essa, é como milho atirado ao fogo. Engelhado pelas marés ardentes que o consomem, penetra numa pasta dissolvente pelas entranhas até calcinar a dor numa bátega confusa de indiferença e sofreguidão. Desfaz-se em matéria negra para ser devolvida ao mundo, entrando por socalcos de cinza velha deixada aí pelos mortais. Cresce como erva daninha, cenário bucólico escrevinhado pelos poetas que se dedicam ao papel como sonhadores devolutos, pensadores estranhos ao ribombar eterno dos deuses esquecidos no deserto. E as lâminas que se escondem por entre os dedos são como lenços dispostos a enxugar as lágrimas mortiças de um navio pobre, onde se escondem famílias nos entardeceres rumo ao nada.

Queixumes de um opróbrio velho sem consolo, lenços esbatidos em mãos que nada esperam a não ser desprezo e fel. O mundo revoluteia em caprichos insones com marés de um doce enfado até ser hora da partida para uma portinhola esquadrinhada pelo ser celeste maior, rei de um promontório de onde é possível avistar as paredes finais deste santo sepulcro onde caiamos de branco a própria morte. Cai-nos os joelhos na lama, esgravatamos nela para encontrarmos o nosso próprio nome e apenas nos sai o viscoso sussurro de um qualquer papel escrito em latim por um antigo prior da cidade. E depois nada sobra que não seja esse mesmo linguarejar velho, usado para comerciar porcelanas e móveis de família em troco de moedas com imperadores desenhados à força bruta do metal. Bebem-se os últimos tragos desse néctar impiedoso que nos arranca da vida e nos sela no jazigo eterno de onde jamais sairemos por mão humana, mão essa que pouco pode ante as asperezas naturais do Divino. Na fronte sentimos o suor despregar-se como finas agulhas de escultor para logo descer ao peito, num mar morto de sal invisível que aí brota ao calor.