Laurentino tinha um espelho fiel onde guardava relâmpagos que lhe caíam ao colo. Soçobrava nos intervalos da escola, quando o chamavam ao pátio. Recusava-se a ir. Tinha o peito cravado por balas de borracha colecionadas em pequenos tragos de leite, sobre o qual dormitava noite adentro, afoito como um silente dançarino de salão. Lia salmos…
Ergo uma espada acetinada, exausta de sangue quente. Brando-a incandescente como uma ave de rapina a quem se rasga o coração por ordens de justeza bruta e feral. Entreolho as sombras com a lassidão gélida de um falcão, herdeiro de uma guilhotina férrea e trespassante. Ergo-a como antigo troféu de guerra, exortando aos ladrões do…
Margarida colecionava bisnagas de vários formatos e qualidades. A maioria vinha de França. O pai comprava-lhas todos os sábados de manhã, quando ia à praça municipal buscar peixe. Trazia-as no porta-moedas castanho, com espaço para as notas, os documentos de identificação e essas bisnagas com que ela pintava cartolinas nos intervalos da escola. Assobiavam-lhe para…
Gustavo escondia-se por entre as estantes. Gostava de rabiscar pequenos desenhos de animais alados, deixando-os espalhados pela alcatifa lá de casa. Gatinhava por aqueles espaços como um pequeno bandido que foge à própria quadrilha. Adorava deixar-se tombar nas partes mais fofas do chão acastanhado, à espera que o viessem buscar para o adormecerem na sua…
É nos golpes de faquir que revelo a identidade secreta da ave que me persegue. De bico verde, asas em flor desabrida que se erguem ao sol de novembro, pneuma esvaído em névoa roxa sem emanação própria. Roldana no ventre borbulhante que guia os destinos das almas como um poeta cego nas mãos, vidente em…
Escondo neste casaco dois punhais de costureiro da Flandres, barbeando-me com eles em ferida. Arranco a minha tez cobre, general arrependido de entrar numa batalha perdida em alto mar. Atiro as caixas borda fora e espero que o dia nasça para sentir os golpes com os dedos do sol. Visto-me de corsário e ofereço-me numa…
Dói-me o peito onde as garças se lançam em abomináveis jactâncias. Cresço a preceito como se soubesse o desfecho do mapa, escuteiro sem lenço que me identifique. Presto testemunho invisível a um raio que me atravessa à força de um isqueiro em combustão lenta, ardor ilusório que me consome em labaredas pardas. O lento azedume…
Sou lento como um poente que alcança as lâmpadas deste tecto falso. Coço os meus pensamentos com a lâmina fingida de um copista barato que se vende por pouco em feiras de rua. Aliso a calçada com o meu fingido plano de emboscada a Norte, onde descubro a mentira maior. Os joelhos arqueiam ao serviço…