Category: Fragments


  • Rosa XXXVI

    Laurentino tinha um espelho fiel onde guardava relâmpagos que lhe caíam ao colo. Soçobrava nos intervalos da escola, quando o chamavam ao pátio. Recusava-se a ir. Tinha o peito cravado por balas de borracha colecionadas em pequenos tragos de leite, sobre o qual dormitava noite adentro, afoito como um silente dançarino de salão. Lia salmos…

  • Rosa XXXV

    Rosa XXXV

    Ergo uma espada acetinada, exausta de sangue quente. Brando-a incandescente como uma ave de rapina a quem se rasga o coração por ordens de justeza bruta e feral. Entreolho as sombras com a lassidão gélida de um falcão, herdeiro de uma guilhotina férrea e trespassante. Ergo-a como antigo troféu de guerra, exortando aos ladrões do…

  • Rosa XXXIV

    Margarida colecionava bisnagas de vários formatos e qualidades. A maioria vinha de França. O pai comprava-lhas todos os sábados de manhã, quando ia à praça municipal buscar peixe. Trazia-as no porta-moedas castanho, com espaço para as notas, os documentos de identificação e essas bisnagas com que ela pintava cartolinas nos intervalos da escola. Assobiavam-lhe para…

  • Rosa XXXIII

    Gustavo escondia-se por entre as estantes. Gostava de rabiscar pequenos desenhos de animais alados, deixando-os espalhados pela alcatifa lá de casa. Gatinhava por aqueles espaços como um pequeno bandido que foge à própria quadrilha. Adorava deixar-se tombar nas partes mais fofas do chão acastanhado, à espera que o viessem buscar para o adormecerem na sua…

  • Rosa XXXII

    Tudo o que jaz na minha cabeça é como um prato surdo que não chega a lugar algum. Receio pela minha própria condição de humano ao resgatar-me deste som distante por onde tu corres em pegadas soltas de cuspe. Leio-me a mim mesmo com olhos de águia morta que se solta nessa correnteza, nas cúspides…

  • Rosa XXXI

    Rosa XXXI

    É nos golpes de faquir que revelo a identidade secreta da ave que me persegue. De bico verde, asas em flor desabrida que se erguem ao sol de novembro, pneuma esvaído em névoa roxa sem emanação própria. Roldana no ventre borbulhante que guia os destinos das almas como um poeta cego nas mãos, vidente em…

  • Rosa XXX

    Rosa XXX

    Escondo neste casaco dois punhais de costureiro da Flandres, barbeando-me com eles em ferida. Arranco a minha tez cobre, general arrependido de entrar numa batalha perdida em alto mar. Atiro as caixas borda fora e espero que o dia nasça para sentir os golpes com os dedos do sol. Visto-me de corsário e ofereço-me numa…

  • Rosa XXIX

    Rosa XXIX

    Dói-me o peito onde as garças se lançam em abomináveis jactâncias. Cresço a preceito como se soubesse o desfecho do mapa, escuteiro sem lenço que me identifique. Presto testemunho invisível a um raio que me atravessa à força de um isqueiro em combustão lenta, ardor ilusório que me consome em labaredas pardas. O lento azedume…

  • Rosa XXVIII

    Sou lento como um poente que alcança as lâmpadas deste tecto falso. Coço os meus pensamentos com a lâmina fingida de um copista barato que se vende por pouco em feiras de rua. Aliso a calçada com o meu fingido plano de emboscada a Norte, onde descubro a mentira maior. Os joelhos arqueiam ao serviço…

  • Rosa XXVII

    Fujo do sol como um regato se esconde de quem lhe cospe. Calço polainas e julgo ser capaz de escalar o Vesúvio com as mãos ao contrário, soltando pigarreios por montes claros em negativo. O luar mata-me a fome como a um recém-nascido que tem no leite a solução para tudo. Vivo nesta missão secreta.